Kvasir: a vítima da ignorância



Os Vanir e os Aesir decidiram colocar um ponto final à série de confrontos numa guerra  que não conduzia a lugar nenhum. As duas castas divinas perceberam que não ganhavam nada em exterminarem-se mutuamente, correndo o risco de apagar da memória do tempo as virtudes e defeitos de deuses, concluindo que a coexistência seria mais benéfica para a Humanidade. De um lado, os Vanir, a linhagem dos deuses da fertilidade e da magia da Natureza, e do outro lado, a linhagem de deuses da soberania e da guerra, reuniram-se para selarem, definitivamente, a paz. Mas as duas partes queriam garantias de que este armistício seria cumprido, então, decidiram cuspir para dentro de um caldeirão, emblema do renascimento. Neste "ventre" maternal, a saliva misturou e uniu o conhecimento dos Vanir e dos Aesir, tornando-se numa substância mágica. Cuspir é o mesmo que dar a palavra, assumir um compromisso, fazer um juramento, ao mesmo tempo é um ato de criação. Os deuses não queriam que este testemunho de tréguas se perdesse, pelo que pegaram neste líquido e moldaram um homem. Kvasir nasceu da matéria fundida no caldeirão trazendo nele uma sabedoria imensa, sendo tão sábio que não havia perguntas para as quais não tivesse resposta.

Kvasir viajou pelo mundo para ensinar a sabedoria e a inspiração aos Homens. Era a personificação do conhecimento superior, o tesouro libertador da ignorância e a expansão da consciência. Um importante legado dos deuses para a evolução, mas como em todos os processos emancipadores, a escuridão do pensamento aparece sempre para atrapalhar. Kvasir despertou a ganância dos anões Fjalar e Galar que o convidaram para um encontro particular com o intuito de o assassinar para derramar o seu sangue nos vasos Odreir, Son e Bodn para usurparem para si próprios um bem universal. Juntaram ao sangue mel (mel e seus derivados fazem parte das bebidas especiais do universo indo-europeu) e produziram o hidromel - quem o bebesse convertia-se num bardo ou sábio. Os anões representam um estádio muito primário de consciência e estavam ainda num nível de entendimento incapaz de aguentar o brilho da sabedoria. Como habitantes dos lugares sem luz, no subsolo, os anões simbolizam a estupidez e a ignorância. No mundo terreno existe uma vertente de anões, igualmente ignóbeis e arrogantes, cuja predisposição é precisamente a mesma: aniquilar e exaurir o brilho de quem se encontra num patamar consciencial superior.  

Fjalar e Galar ameaçados por Suttung ofereceram-lhe o hidromel para que o gigante lhes poupasse a vida. Suttung levou os três vasos para o interior da montanha para ficarem à guarda da sua filha Gunnlod. Os gigantes são seres de Jotunheim, mundo das forças adversas à fertilidade, mas também a lembrança do mítico Ymir, o primeiro ser da Criação. Gunnlod, a guardiã do hidromel, simboliza a Mãe arcaica, o útero da Terra. Na caverna, lugar das profundezas primárias onde germina a vida, a gigante preservava a força mágica que conduziu Odin à Iniciação na Poesia Êxtatica. A ambição de possuir as virtudes da erudição levou Odin a transformar-se em serpente, o estádio primário da existência para alcançar a luz superior simbolizada pela águia, animal no qual se transformou depois de beber num só trago o hidromel dos três vasos. Odin conquistou a confiança de Gunnlod mas não cumpriu a promessa de apenas provar um bocadinho da bebida mágica. A ânsia de querer tudo era insuportável, pelo que Odin sorveu o líquido integralmente. Enquanto voava em fuga, deixou cair do seu bico uns pinguinhos de hidromel e assim doou a arte da Poesia aos homens abençoados pelas pequenas gotas.

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