A serpente, a pedra e a moura encantada

O solo que pisamos preserva memórias arcaicas de ofiolatria trazida pela mítica "invasão de serpentes" descrita por Avieno que, por essa razão, apelidou o nosso território de Ophiussa. A consciência da serpente infiltrou-se nas liturgias e nas pedras que testemunham a sua presença como ídolo religioso e alegoria viva da Mãe telúrica. Fonte inspiradora de reverência e de vigor, o símbolo da serpente encorpou-se em crenças sobre a Vida e Morte, numa terra que, apesar da usurpação cristã, se manteria fiel à sua memória simbólica na imagem da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, e na heráldica portuguesa, durante muito tempo sob a égide ofídica. O atributo anímico da Grande Progenitora poderá estar eternizado na estátua-menir da Ermida (serra Amarela). Esta escultura pré-histórica concentra no granito uma possível reminiscência de ritos de fertilidade e de exaltação de uma ginocracia, relembrada nas fábulas sobre mouras encantadas e na adoração das sucessoras de entidades femininas arcaicas: as santas e as Nossas Senhoras. É o que Moisés Espírito Santo considera ser “o desejo da presença da mãe”, a ideia primitiva e nostálgica do ciclo contínuo do nascimento e morte latente na mente humana, desde os tempos da sua união consciente e espiritual com a Natureza.

Vestígios de cultos ofiolátricos

Os Saephes, adoradores de serpentes, deixaram-nos fortes impressões da sua cultura que sobrevivem em lendas de perigosos ofídios, cujo poder de sedução ou de destruição povoam imensas narrativas populares. O período pré-histórico acentuou o imaginário coletivo a propósito da força serpentina que revivemos em insculturas serpentiformes decorando painéis pétreos nas paisagens em vários pontos, estendendo-se à Galiza. Em Vimioso existe uma terra chamada Campo de Víboras, onde viveram estes répteis agora encantado e inofensivos. Cobras, ou pedaços das mesmas, são embebidas em álcool e vendidas pelas suas propriedades medicinais. Em São Pedro do Sul, a aldeia da Pena cresceu após a fuga das pessoas aos ataques de um cobra gigantesca que vivia no rio. No entanto, ficou a saudade dos habitantes da convivência com a tal serpente – daí o nome da aldeia da Pena. A pedra e a serpente formam uma dupla simbólica em histórias extraordinárias associadas a mulheres do Outro Mundo e a fenómenos sobrenaturais. A arte megalítica constitui um válido testemunho desses cultos ofiolátricos sendo, por outro lado, ponto de manifestação do sagrado antigo: as cobras ou víboras cinzeladas nas rochas parecem ser totens ou manifestação divina outrora intrínsecos à veneração da Terra Mãe. Sobre antas edificaram-se capelas, numa tentativa de domesticar a energia telúrica ou manifestações etéricas que aconteciam nesses espaços reservados a cultos funerários e de valorização da força criadora da terra. É no interior da Terra Mãe, entidade divina e soberana, que vive a serpente e é do seu corpo que despontam as formações rochosas debaixo das quais irrompem aparições de belas e tentadoras donzelas – algumas em forma de serpente ou dragão. Memórias esparsas do culto dos antepassados, os rochedos ou penedos tornaram-se, por intervenção do Cristianismo, em suportes de mitos etiológicos de milagres que converteram em santos o que anteriormente foram hierofanias da fertilidade. Proveniente do mundo dos mortos (lugar dos ancestrais), e pela sua natureza abscôndita, a serpente carrega o simbolismo do Além, partilhando a conexão entre a vida e a morte com as sedutoras mouras encantadas – estas constituintes do imaginário popular, outrora manifestações vívidas da Deusa nutriz. No fundo, as duas dobram-se em si mesmas numa dimensão zoomórfica e antropomórfica como reflexos de uma única entidade: a Terra, o mesmo será dizer a Grande Deusa que reinou na velha Europa, antes da consciência bélica a separar do seu consorte masculino, imanente em si mesma.

A serpente é um animal solidário à água, aos líquidos e ao sangue, e como tal está umbilicalmente ligada ao corpo da Grande Mãe, por inerência aos mistérios femininos e ritos de renovação. A capacidade de regeneração da serpente mimetiza os ciclos sazonais da Natureza e o ciclo menstrual da mulher, a fase de poiso que prepara o útero para a fecundação. Pela dimensão ctónica, subterrânea e terrestre, a serpente encarna os atributos da Deusa-Mãe e é, por excelência, o avatar da Lua. A pedra, por seu turno, contém também um vetor estimulador da fertilidade: a pedra de fecundar, ou o penedo do casamento constituem elementos simbólicos integrados no folclore: as mulheres esfregavam-se no penedo mágico (agora extinto) na praia do Canidelo (Vila Nova de Gaia) num ato simbólico de fecundação, ou então recorriam às propriedades fecundadoras do maço de pedra do Hércules no santuário de S. Brás (Santa Cruz do Bispo), ou à ponte de Mizarela (Montalegre). O fenómeno geológico das pedras parideiras (serra da Freita, em Arouca) transformaram-nas em poderosos talismãs de fertilidade. Passar por entre o intervalo de penedos, do santuário da Nossa Senhora da Penha atesta, igualmente, a função maternal e regeneradora da pedra. O carácter solidário à água seminal ou até terapêutico da pedra (é do interior de um penedo, para onde caiu Santa Eufémia, que brotam as águas termais do Gerês) e da serpente enraizaram-se na tradição popular como potência palingenésica. A oferenda de répteis embalsamados à Senhora do Alívio (Vila Verde), em prol da maternidade, reforça a ação fecundante destes répteis. Já os sardões eram solidários dos homens, tanto que antigamente se dizia que atacavam as jovens menstruadas que trabalhavam no campo. Na gruta, onde se deu a aparição da Senhora da Abadia, também no Gerês, nascem as águas que curam o veneno das serpentes e expulsam as cobras que as pessoas tenham engolido inadvertidamente quando dormiam nos campos.


A simbiose da serpente à menstruação
A primeira menstruação simboliza a passagem à condição de mulher. As jovens germânicas eram integradas na comunidade após a mãe exibir ante os olhos do pai o pano com o primeiro sangue das regras. Em várias partes do mundo, considerava-se perigoso para um homem ter relações sexuais com uma mulher menstruada, sob a pena de ficar impotente ou contrair uma doença. A palavra tabu aplica-se tanto ao sagrado como ao impuro, fundindo-se, pois, o seu significado nesta ambivalência. O tabu concede, portanto, atributos muito especiais ao sangue menstrual. Entre os ameríndios, as mulheres recolhem-se em tendas sagradas para doarem aos solos o sangue menstrual, num gesto de partilha dinâmica das funções regenerativas da terra com a faculdade reprodutora humana. O derramamento de sangue criou um impacto brutal por ocorrer de forma espontânea e sem qualquer ferimento. Só isso bastava para fomentar o temor perante o que parecia ser um poder sobrenatural. É, porém, a evidência da incapacidade do homem em beneficiar de algo profundamente sagrado e misterioso, exclusivo à mulher.
Transformadas em serpentes ou dragões, as mulheres do Outro Mundo eram desencantadas ao cabo de três noites – o tempo normal de fluxo menstrual.
Associação da serpente ao sangue feminino concede-lhe um misterioso poder interventivo no rito de passagem da puberdade para a idade adulta e reprodutiva. É também uma espécie de reconhecimento tácito da existência de Lillith, a serpente emancipadora que seduziu Eva a transcender a submissão a Adão – ou a Sofia dos gnósticos, o princípio feminino redentor. Este poderoso atributo teria de ser castrado e recalcado no inconsciente feminino, tomando a forma de um monstro, dragão ou demónio, tal como Lillith, a essência viva da mulher inteira e majestosa, fora erradicada do paraíso por ousar a desafiar os valores patriarcais subjugados a um Deus inacessível e dominador. O sangue retido, por via da menstruação ou virgindade, estava dotada de potência, por essa razão nota-se nas narrativas a necessidade de purificar e exorcizar as donzelas do dragão/serpente que vive dentro dela, antes de consumar o casamento. Há aqui um padrão tendencioso: ao domesticar o dragão, o indivíduo toma posse do poder pessoal da mulher e atualiza os modelos moralistas vigentes. Por outro lado, vislumbramos que a sexualidade é a tomada de consciência do poder feminino. O ato sexual, ilustrado nas fábulas de mulheres encantadas, é o fator operante da passagem da noiva sobrenatural para a condição humana.

A essência da Deusa sobreviveu à ditadura cristã, mercê da sua plasticidade que ajudou a camuflar-se na tradição multissecular europeia, nos recônditos da memória antropológica. Sob a aparência de génios femininos da Natureza, elas viveram sob rochedos, não por ser apenas um lugar seguro, mas porque, provavelmente, terão sido o seu habitat de sempre (S. Martinho de Dume empreendeu uma cruzada contra a litolatria). Ela sobrevive nos contos das mouras encantadas, outrora divindades femininas forçadas a mascarem-se em seres estranhos e ambíguos mistificados como força maligna e desviante, mantendo, contudo, a personalidade benevolente e generosa. Ora emergem do subsolo, de grutas, de penedos, ora de troncos ocos de árvores prometendo riquezas exclusivas. Estas mulheres de Outro Mundo agraciavam aquele que tivesse a coragem para se juntar à serpente, no fundo à força regenerativa da própria terra. A deusa Holda, por exemplo, desafiava os agricultores com um teste simples mas de resultados grandiosos: foi ela a ensinar o homem a cultivar o linho, e fazia despontar a vida nos campos. Sentadas sobre uma grande pedra ao meio-dia a pentear os longos e dourados (analogia ao sol) cabelos, teciam um jogo de sedução e promessas de contatos eróticos em troca de tesouros que guardam debaixo da terra - numa clara recordação de ritos de agrários. Elas tinham o poder sobre a vida e a morte. Acompanhadas pelo seu tear, de medas de fio e de tesouras de ouro, elas personificavam o papel de tecedeiras do destino, tal como as Moiras, as Parcas ou as Nornas.

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