A passagem para o Mundo de Lá

O ato de caminhar pressupõe um movimento em direção a algo, de uma forma consciente e deliberada. A concentração nesse movimento conduz-nos para dentro, como uma força centrípeta, absorvente e que nos leva a lugares profundos do nosso self. A demanda do peregrino que vai deixando as suas pegadas ao longo do caminho, como testemunho do seu desprendimento do mundo exterior, ordinário e pautado por agruras, abraçando plenamente o sentido de religare. Terá sido essa motivação nas insculturas de pedomorfos feitas pelo Homem da pré-história num afloramento granítico, em Lomar (Penafiel)? Não se sabe ao certo, mas abre um belo campo de discussão fenomenológica. 

O simbolismo dos pés é diverso e o que parece mais marcante, nesta história com páginas em branco, é o facto de representar uma impressão para a posteridade. Como se o imaginário coletivo impelisse os seus autores a deixarem uma marca imortal dos seus esforços em alcançar o Mundo de Lá, como guias espirituais para os seus descendentes. Esta força interior e misteriosa mitigaria ansiedades existenciais sobre a Vida depois da Morte, a dicotomia entre o Mundo subterrâneo e o Mundo celeste, estando o do Homem de permeio. A presença constante de cães que nos acompanhou todo o percurso de visita, convenceu-me que aquelas "pegadas" seriam uma tentativa de descida ao Submundo, prevalecendo para isso o significado da pedra como lugar de manifestação de divindades femininas ctónicas.

Esses seres ambivalentes obrigando-nos ao confronto das nossas obscuridades, ao confronto com a angústia que nos força à renúncia das dificuldades no contacto com a realidade. Elas prometem a mudança, mas antes são cruéis, ao expor-nos à negritude que se oculta nos nossos recônditos. Ao caminhar concentrados apenas no som do trilhar dos grãos de areia à nossa passada, algo de vai alterando no sentido de baixo para cima. Vamos ficando conscientes do esforço das nossas pernas, um cansaço vai crescendo ao longo do corpo e logo surge uma irresistível vontade em parar, em interromper. 


A profundidade com que aqueles pedomorfos estão insculpidos numa rocha dura, por isso exigente, talvez nos recorde as dificuldades do desafio em alcançar um novo estado de ser. Os pés são os nossos alicerces, o apoio de uma estrutura complexa que é o nosso corpo. A união à terra cria a perceção de firmeza, de garantia de passagem segura do espaço exterior para o espaço interior.

Mosteiro de Cête- Paredes
Porventura, terá sido esse significado mistérico subjacente naquelas gravuras rupestres a que as populações chamam de "pegadinhas de São Gonçalo", o beato que pregou o Evangelho pelas bandas do Tâmega. Ou será o mesmo que invadiu a cultura do símbolo do Românico, tão característico no Vale do Sousa e do Vale do Tâmega, cujo mosteiro de Cête é um dos muitos dos seus ex-líbris. 

A carga psicológica do período Românico assenta num universo infinito de símbolos e de significados em que a arquitectura dos edifícios religiosos estabelecia correspondências com a cruz onde Cristo se entregou à Redenção da Humanidade. Os portais e tímpanos foram cravejados de temas figurativos, num convite a ritos de passagem. A panóplia de figuras em redor das portas apresentam-nos várias níveis de passagem, ou seja, a cada passada que damos algo de nós vai ficando para trás: é como se nos libertássemos, aos poucos, de uma peça de roupa, para alcançarmos "o corpo de Cristo", completamente despedidos - sem sinais de sentimento de vergonha ou de culpa. 

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