Beber da fonte de Mimir


O festival religioso, Fontinalia, que tinha lugar a 13 de outubro, reativou-me a lembrança da fonte das águas do saber de Mimir, gigante arquivador das memórias da origem dos Tempos. A fonte, sob a custódia da cabeça mumificada pelas artes mágicas do seu sobrinho Ódin, fornecia o líquido mágico que nos abre as dimensões ao conhecimento superior, ao banho regenerador nas entranhas profundas do nosso intelecto. A Fontinalia romana celebra a importância de Fontus, o deus dos poços e nascentes, como símbolo da água viva que brota do ventre da Mãe-Terra que nos alimenta e regenera, preparando-se para o banho purgativo. Numa época em que a humanidade se encontra num atoleiro de vaidade, arrogância, violência e consumismo, urge o despertar das serpentes que vivem encobertas nas fontes, outrora pontos de passagem para o Outro Mundo, para o convívio do glorioso Paraíso terrestre do indivíduo livre.
 
Mimir preserva a memória da sabedoria e dos ancestrais - os grandes mestres da transformação iniciática - e a água que corre pelo bico da sua fonte é constantemente renovada, assim como o sol quando se ergue no horizonte, depois da travessia pelo submundo. Da mesma forma corremos pelos labirintos das trevas e da escuridão durante o sono e dele podemos despertar revigoradas pela experiência onírica, se nos permitirmos a entrar no nosso submundo. O conhecimento não-manifestado armazenado no nosso subconsciente é como água sustida pelas represas: pressiona, satura e ameaça transbordar caso não seja lentamente liberta pelas eclusas.
 
As águas da fonte de memória concedem a vida eterna, porque vamo-nos purificando à medida que evolui e progredi o conhecimento sobre nós próprios. Esse é o segredo que Mimir transferiu para Ódin quando lhe deu um corno com água santa do submundo, carregada de nutrientes provenientes de uma das raízes da Árvore da Vida, Yggdrassil. Neste líquido, Ódin logrou alcançar o conhecimento atávico, despertando a essência secreta dos gigantes, seres primevos que estão na origem das castas divinas dos Aesir. Ódin tomou consciência das suas origens, ao ultrapassar os limites da condição temporal, e indicou-nos o caminho para a morada da eternidade: a lembrança de quem somos realmente para lá das paredes ilusórias do corpo. A busca da identidade espiritual é superior à construção frágil da identidade social terrena: o sentimento de pertença a um determinado grupo está a criar necessidades de dependência e ao consequente afastamento de si próprio. Os exemplos da sociedade estão a criar autómatos e viciados em aspetos meramente materiais da existência humana. Está, portanto, na hora de voltarmos a descer até Hades e procurar a fonte da Memória.
 
A água como fonte de regeneração desempenhava um papel central nos mistérios mitríacos. Numa das cenas, como no êxodo moisaico, Mitra bate numa rocha (Petra Genetrix) que abre uma fenda da qual jorra água. Um texto mitraico explica que o fluxo de água era fonte de vida e renovação imortal. Em todos os complexos mitológicos encontramos dedicatórias a "entidades inanimadas", tratadas como divinas e capazes de escutar os apelos  humanos, estando dotados de poderes de cura. Precisamos de saciar a sede e beber o fio fresco e ondulante que brota  da fonte dos tempos imemoriais.
 
 

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