Vislumbrar a Deusa

A virgem, como nos diz sabiamente Jean Markale no seu livro Grande Deusa, é uma mulher selvagem, insubmissa, radiante, é aquela que depende apenas de si própria e não necessita de uma muleta para afirmar a sua identidade, de uma forma ativa e não uma extensão idealizada da personalidade da contraparte masculina. O gesto de tomar banho, de estar despida equivale à força da revelação, da manifestação. Acteão encontra-se ainda num estádio evolutivo primário, porque é motivado pelos instintos, não está, portanto, preparado para aceder aos Mistérios da Lua, ou seja entender o significado da expressão MULHER. Por isso sujeitou-se ao castigo, sendo transformado em animal. Diana acabou por mostrar a todos em que patamar se encontrava Acteão: distante do celeste e muito apegado aos sentidos, à sexualidade instintiva e distante da sexualidade transformativa. Com o seu crescente lunar sobre a testa, Diana simboliza as emoções, a psique, a alma. Ela diz-nos que temos de mergulhar no subconsciente, na nossa noite interna, eliminando os efeitos sensoriais sobre o nosso discernimento: então descobrirmo-nos plenamente e só depois ela deixará cair a sua túnica livremente...despedindo-se, como Ísis se revela ao Iniciado, após o entendimento deste sobre o significado mistérico da Natureza.
Os elementos simbólicos de Diana lembram-nos a Vénus de Laussel. A mulher de corpo abastado, de expressivos órgãos reprodutores, tendo na mão direita um corno de bisonte - animal solidário do vigor e da força fecundante masculina - e de mão esquerda sobre o ventre, o magistral berço onde germina a vida. O episódio mítico de Diana e Acteão pode ainda ser interpretado com sendo um belo drama entre os corpos celeste, Sol e a Lua. Na forma de veado, Acteão assume o forte simbolismo solar. Os cervídeos personificam nas principais mitologias a vitalidade trazida no regresso da época produtiva, na primavera. O sacrifício de Acteão, cujo sangue é derramado, constitui parte da simbólica dos rituais mitraicos: Mitra faz soltar o líquido vital do touro sacrificial, numa cena de transferência da alma solar contida no sangue sobre os solos. Neste sacrifício expurgam-se as "toxinas" que esterilizam a gestação da vida no subsolo.
Gruta onde apareceu a imagem da Senhora do Salto |
Anta na Serra da Freita |
Após um fim de semana em Cinfães fez-me sentir ter deixado para trás uma terra de úberos tranbordantes e vibrante de vida, qual Vénus do paleolítico, resquícios da Deusa, agora substituída pelas inúmeras Nossas Senhoras, presenças tutelares de encruzilhadas nas aldeias daquele concelho. Terra de água lustral, de penedios magnéticos, marcados por cultos pré-históricos em solo onde Bóreas é déspota e chicoteia a vida. Entre a serra de Montemuro, e as veias de "sangue" do Bestença que se infiltram no rio Douro, entre margens sacralizadas pela imagem perdida da Deusa, que a capela caiada de branco da Senhora da Estrela, em Boassas, aviva a memória da antiga stella maris estilizada na concha de vieira de Santiago de Compostela. Nas festas em honra desta Senhora, as vareiras de canastras à cabeça celebram a Senhora que brilha sobre o mar, as águas salgadas, como o sangue, e nutritivas como o leite.
Rio Bestança |
"Vem cá, vem Helka, mulher bonita, de perto da turfa para estancar a ferida aberta com musgo, encobrindo-a com pequenas pedras, de modo a que o lago não transborde, e que o sangue vermelho não inunde a terra". Este é um esconjuro feito em nome da deusa Helka ou Helga da mitologia finlandesa, cujo poder sarava os ferimentos feitos com armas de ferro. Helka era, pois, uma divindade da cura e do renascimento, ainda hoje celebrada na primavera no festival Ritvala Helka.
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