Renascer no fogo


Jacob Grimm conta que os alemães no século XIX comparavam o fogo ao voo do galo de telhado em telhado. O galo é um símbolo solar, por anunciar o nascer do astro do dia, é o seu avatar que vive mais próximo do mundo terrestre. O fogo é a manifestação mimética do Sol no plano terreno, tendo, por isso, a mesma expressão solar, como difusor de calor que nos lembra vida, força, vitalidade e ação. As fogueiras de maio ateadas na celebração de Walpurgias anunciam a reconstrução da ordem a partir do Caos do período escuro do inverno. É a instalação de uma nova forma e de uma nova ordem por uma determinada energia. Durante a velada das fogueiras de Yule, sob os céus negros e frios de dezembro, as comunidades depositam no crepitar dos tições a esperança do advento do Grande propiciador que vence as trevas e restabelece a celebração da vida e da matéria. As "Murras" transmontanas, a arderem no centro da aldeia (representa a coesão da comunidade), simbolizam o fogo purificador, lembrança de antigos rituais do solstício de inverno, celebrando a chegada de um novo ciclo do sol fertilizador sobre a terra. O povo levava tições para casa como amuletos.  Sigilo do fogo primal, que se encontra ainda num estádio precoce de desenvolvimento, Fehu é fonte potencial que tanto tende a fortalecer como destruir. Neste sentido, a sua utilização negativa (ou na posição invertida) conduz à perda, à ruína; à desvitalização. 

A esta necessidade orgânica e física junta-se o extraordinário apelo de regeneração psicológica, que nos abra num novo horizonte e nos ofereça as tochas que iluminam a longa travessia pelo nosso submundo. Há momentos em que a escuridão nem sempre prepara a vinda da luz. É um processo estranho que cega e entorpece o discernimento, como se acendalha estivesse húmida e nos privasse de atear a fogueira do renascimento. Há quem ignore o poder mágico do fogo e nem sequer se propõe mergulhar nos seus ardentes braços. Na intimidade com o fogo, os ferreiros-xamãs entravam num estado induzido de transe, facilitando a entrada na teia de imagens tecida pelos sonhos. A mestria do fogo era uma das atribuições e técnicas do xamã: dominar o fogo e, através dele, atingir um estado sobre-humano de êxtase (“calor místico” ou “calor interior”), aquele que lhe confere um estado criador mágico. 

Estão para breve as fogueiras salutíferas de São João, que estalam as fragrâncias das plantas aromáticas, e sobre as quais se despeja uma tábua com doze mãos-cheias de sal (significando os doze meses do ano). E delas saltam seres ígneos que nos purificam, nos deixam frescos e disponíveis ao êxtase do amor. As fogueiras joaninas têm um poder libertador e, ao mesmo tempo, lembram-nos que o sol vai entrar na sua fase poente. 

O fogo segue o ciclo do sol no céu ao longo do ano: as labaredas vão crescendo, aumentando em calor, para depois ir diminuindo até se extinguirem e deixar o espaço praticamente sem luz.  O processo volta à estaca zero, como no início dos Tempos. Primeiro, o escuro, o gelo e as brumas de Niflheim ficam estanques, à espera nas chispas que saltam de Muspelheim, do reino poderoso do fogo. E desta união surge a matéria e inicia-se a criação do Mundo. Lá está: após um longo período de negritude e paralisia, faz-se luz e vida. Andamos sempre assim, em flutuação constante, em reconstrução em reconstrução.
  

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