Memória: o mais belo espólio humano

A redescoberta de mais um pequeno pedaço da nossa longa memória devastada pela indiferença a que o progresso nos foi viciando com distrações superficiais, efémeras e vazias, enriqueceu o dia consagrado a São João, o santo solsticial anunciador do Agnus. As fiandeiras cósmicas, as Nornas, demonstraram, mais uma vez, que sabem como deslizar o fio de prata pela roca e o fuso, orientando a minha intuição até às raízes da atual cidade da Maia, e promovendo um encontro intemporal com alguém que define o contacto com os artefactos como de "conexão emocional". A atenciosa senhora (a quem não perguntei o nome, porque na empatia dispensam-se apresentações) do Museu de História e Etnologia da Terra da Maia revelou-me o quanto o "maravilhamento" (expressão da sua autoria) provocado pelas peças aparentemente inertes em cada sala de exposições a faziam "entrar" na memória residente nelas. 
A falta de sentido de preservação tem nos feito perder a magia emocional do historial de tribos e os seus deuses que calcaram o solo deste retângulo à beira-mar plantado. Já não há a noção de conservação da experiência anterior subjacente à presença de povoações, neste caso, na Maia e em seu redor. Não há dinheiro para investimento arqueológico; é como se perdêssemos o orgulho nacional, atualmente confundido com doutrinas extremistas, xenófobas. O coração apaixonado da tal senhora pelo sentir sensorial dos fragmentos pré-históricos e romanos uniu-se ao meu pelo fio de prata, ambas partilhámos o fascínio por aquelas cápsulas de tempo que se revelam ao nosso toque e contam-nos histórias imperceptíveis aos que se ficam pela tábua rasa das experiências. 
A memória étnica corre o risco de se perder. E sem memória não há futuro. A ausência de memória condena-nos ao estado de autómatos. Ódin tinha a noção de que perdendo Mimir, o seu tio e arcano da Memória Arquetípica, tudo o que ele mesmo simbolizava desapareceria, como que sujeito a um violento vendaval. A Mimir foi-lhe cortada a cabeça pelos Vanir, como gesto provocativo face ao silêncio de Hoenir «pensamento» durante a ágape de tréguas com os Aesir.
Mimir «memória» tentou explicar-lhes que o pensamento é mais subtil que o caminhar dos gatos e que as palavras são simplesmente agitadores. Mimir e Hoenir estão juntos, porque o pensamento alicerça-se precisamente nos sedimentos armazenados ao longo de experiências, intercâmbios e da consciência do passado. Pois é o passado que alimenta o futuro. Ódin usou da sua arte de nigromante e de curandeiro e embalsamou a cabeça de Mimir, restituindo-lhe a vida, colocando-a como guardiã da nascente das águas da sabedoria. 
Hoje, bebi um pouco dessa água subterrânea e vi à minha frente o passado que dá significado à cidade da Maia. Nesse local onde outrora habitaram os Madequisenses, núcleo familiar integrado num polo étnico mais vasto, os Brácaros. Os romanos quando por lá se instalaram e aproveitaram as construções castrejas mantiveram a etimologia original. Os Madequisenses têm radical no Indo-Europeu Madia «terra húmida», e evoluiu de Madea-Madia-Maia. 

Terra húmida!!! Sim, o solo da Maia era fértil e alagadiço, propício à produção do linho. Essa lembrança varreu-se, quase ninguém se recorda que o linho era rei e senhor da economia das terras do Lidador. Resta-nos a memória impressa nas telas do mestre Albino José Moreira.  A arte naïf de um pintor que não seguia convenções académicas. 
Terra ubérrima, tal como Águas Santas banhada pelo pródigo rio Leça, cujo leito se abria para um parto maravilhoso e inundava os solos com as suas águas sagradas. Do útero de Águas Santas, freguesia da Maia, brotou o que restou de uma estátua feminina, adequada aos antigos ritos de fertilidade: sobrou apenas a cabeça do que terá sido a Vénus de Águas Santas, idêntica à de Laussel e outras do género.

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