Pelas pedras de Gaia


Afloramento do Canidelo
A dois dias do equinócio de outono, uma voz ressoou no interior do meu cérebro pedindo-me gentilmente para se apresentar por entre penedos banhados pelas águas do mar. A brisa que me seduzira a sair de casa, orientou-me ao volante em direção ao outro lado do Douro, ao corte líquido que me faria embrenhar na neblina de Albion na demanda da  lenda da Bicha Moura. Atravessei o rio, cujas margens Dalila Pereira da Costa decifrou os seus mistérios, e do outro lado, fui ao encontro de memórias residuais em rochedos discretos, aconchego dos que aproveitavam o restinho de calor estival.
A primeira etapa: praia de Lavadores. No horizonte vislumbrei recortes fálicos entumecidos, como que armazéns da espuma seminal de Urano, pai da alquímica Afrodite, outros arredondados como peitos de lactantes, que me acenavam em gesto convidativo para uma dança fecundante. Foi então que me apercebi da força granítica que embeleza as paisagens de Gaia. A superstição e os cultos de bruxaria  popular percorrem as terras gaienses como a fluidez e a agitação das ondas de um mar de divindades pré-cristãs anónimas e transferidas para santinhos e mártires. Esta história de pedras fertilizantes começa um pouco antes, na praia de Canidelo, onde irrompe pelas areias um afloramento ao que terá pertencido uma tal pedra com poder inseminante e muito procurada em tempos por mulheres desejosas por conceber. Elas esfregavam-se naquele falo pétreo e chegavam a casa com o útero fertilizado.

O que é possível ver do Castro da Madalena
Mas a voz sussurrante não parava de gritar no meu cérebro. Prossegui viagem e deixei a intuição conduzir o carro e virar à direita numa encruzilhada para perguntar pela Bicha Moura. Ela queria que eu ouvisse a sua história pela boca daqueles que já foram adolescentes e se deixaram cativar pela sua magia. Sim, o grupo de quatro homens já às portas do inverno da vida recordavam-se dos tempos primaveris de brincadeiras em que a chamavam no Coteiro do Crasto, um local fronteiriço reclamado pela freguesia da Madalena e de Valadares. Tentaram, insistiram e foram até ao buraco onde dizem que se escondeu a criatura metade mulher, metade réptil que se manifestara ao dono do terreno, acometido de devaneios que deram ainda mais forma à lenda da Bicha Moura. O ser fabuloso do Submundo aparecia num grande rochedo em noites de luar, ao bater da meia-noite, na transição de um mundo para o outro, a pentear os seus longos cabelos com um pente de ouro e gravando no solo um trilho aurifulgente. O medo de ser transformado  em cobra ou em pedra tinha um efeito psíquico ambivalente: ao mesmo tempo aumentava o desejo de ser o "escolhido" e o receio de deixar estas existência e perder-se pela escuridão do subsolo. A força magnética deste local, outrora habitat de um castro, passou a ser material poderoso na ativação de feitiços e entrou no roteiro de romarias de bruxas e bruxos. A curiosidade popular juntou-se à festa e virou aquele ponto geomântico num arraial folclórico, ao ponto de causar a destruição de parte de rochedo que se assemelhava aos bons gigantes habitantes da Terra na profundura do tempo. A magia da lenda diluiu-se, restou-me apenas a possibilidade de alcançar a vegetação selvagem que oculta agora a Guardiã de Tesouros que fez questão de me brindar com o majestoso sinal nos céus pelo voo da águia de asa redonda. Nesse momento, tive a certeza que Ela ainda lá está, a aguardar pelo despertar da Serpente Negra, vigiada por sacerdotes que aos olhos dos seus vizinhos aparecem de noite como vultos pretos fugidios.

Deixei para trás a rua do Recanto do Crasto - é incrível como tudo se encaixa num puzzle de mistérios e encantamentos - e segui em direção ao Senhor da Pedra. Mais um local ctónico e dessacralizado. O 21 de setembro, por qualquer razão que não consegui perceber, é dia de visita a todas as capelinhas daquelas bandas de Gaia. O Senhor da Pedra, em Miramar, fixou-se como etapa final de devoção de populares que se juntam provenientes de vários cantos deste retângulo à beira-mar plantado. Deslocam-se de Santa Eufémia, em Valongo, para os santuários gaienses, em rezas e súplicas múltiplas, no que me pareceu ser uma peregrinação expurgatória.

Capela do Senhor da Pedra
Da capela do Senhor dos Amarrados à capela erguida sobre um altar gentio, filas humanas de rosários de promessas a cumprir e outras ainda por formular. Entreguei-me ao caudal de um rio que abre a boca a penedios magnetizados pelas águas primordiais. Quem foi a divindade agora usurpada por um Cristo crucificado? Talvez um ser solar, uma vez que as costas da alva capela são aquecidas pelo Sol Poente. A entidade celeste que morre e renasce diariamente inspira os devotos e insufla o sopro vital ao Cristo ressuscitado. Após breve recolhimento no interior do minúsculo templo cristão, reparei que as pessoas comentavam o quanto gostavam de dar uma voltinha pela capela, como que a restabelecer o círculo, num ritual de reintegração ou de recriação. Como se todos os males fossem expurgados, sendo possível o regresso a casa purificados pela pedra.

Senhor da Pedra ou o Coteiro do Crasto fazem parte de roteiros sobrenaturais ao romper da madrugada. Visitas tenebrosas, burburinhos de rezinhas e mezinhas, círculos de velas a arder, marcas sinistras na areia ou galinhas mortas compõem o rosário de bruxarias variadas que se abatem sobre o corpo lítico do Senhor da Pedra.

Circuito da Senhora da Saúde
Última etapa: Senhora da Saúde, Carvalhos. Outra lembrança castreja, esta de pedras trazidas pelo mar, segundo rezam as lendas. O Monte Murado, agora santuário Mariano, fora habitado pelos Túrdulos Velhos, um povo guerreiro do sul da Península. No alto desta elevação natural, de paisagem bucólica, tem-se uma vasta referência espacial a partir do qual a vista alcança Espinho, Penafiel, Valongo, Gondomar, Campanhã, o Monte da Virgem, Avintes, e o mar, claro... Quem será esta Senhora a quem as mulheres dos pescadores clamavam pelo retorno são e salvos dos seus maridos, e é celebrada a 15 de agosto, no dia da ascensão da Virgem, avatar de Ísis?

Ó Senhora da Saúde
De varandas para o mar
Não deixeis o meu amor
Naquelas águas ficar 





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