A festa das Valquírias

E pronto: encerramos o primeiro mês de 2015, um ano que evoluirá ao ritmo intenso e marcial de Marte, que distribuirá pelo globo incontroláveis impulsos de mudança - tal e qual como nos promete a runa Uruz. O pano cai sobre o governo de Janus no dia em que o universo mitológico escandinavo celebra as Valquírias.
 
A Valquíria é uma divindade menor, cuja função mais difundida era selecionar e decretar a morte dos mais bravos ecorajosos heróis, e deles retiravam o espírito o levavam nos seus argênteos cavalos alados para o Valhalla. Estas nobres donzelas de natureza ígnea aparecem também relacionadas a casos amorosos com homens humanos que têm um papel-chave em narrativas épicas, como a do carrasco de Fafnir, Sigurd, que depois de uma série de peripécias, acabou morto e cremado juntamente com a temperamental valquíria Brunhild. A beleza que lhes é atribuída não deve ser imaginada dentro dos padrões estéticos da atualidade, mas de acordo com um aspeto atlético e assertivo. 
 
O passado mitológico das Valquírias, porém, nem sempre foi pincelado com agradáveis traços, devido ao forte e funesto significado do nome  pelo qual são conhecidas: "a que escolhem os mortos em combate". E não é apenas pelo facto de determinarem quem ganha o passaporte de acesso ao Paraíso dos Guerreiros, mas também pelas artes mágicas que utilizavam para garantir as suas preferências. É certo que os meios podem não ser os mais corretos para atingirem os fins, porém, destaco o facto de estas guerreiras do exército de Freya e mensageiras de Ódin, o Senhor Todo-Poderoso, tirem olho clínico para fitarem os melhores entre os melhores. Para elas não servia qualquer um, tudo obedecia a rigorosos critérios de seleção: coragem, caráter, sabedoria e capacidade de liderança. Curiosamente, características de personalidade que excasseiam no mundo de hoje, talvez por faltarem também Valquírias que fundem no seu âmago a beleza da determinação com que encaram a vida e os desafios, impondo-se como mulheres exigentes e criteriosas, sem se apoiarem apenas na beleza física ou atributos de sedução, mas fazendo com que esta característica seja realçada e manifestada de dentro para fora. Uma Valquíria não se contenta com as aparências, com uma imagem construída: ela vai para o campo de batalha testemunhar o grau de comprometimento do indíviduo com a representação que fez de si mesmo entre os mortais que enaltecem o carácter. 

O domínio sobre o destino dos guerreiros tornava-as em seres terríveis, porque não eram controláveis e revelavam uma frieza crua no momento de roubar o sopro de vida num beijo mortal, sendo por isso retratadas de uma maneira macabra, como vemos, por exemplo, em Darraðarljóð, um poema inserido na Saga de Njal: doze Valquírias são avistadas antes da batalha de Clontarf, sentadas junto ao tear, tecendo o trágico destino dos guerreiros; usam intestinos como fios de teia, cabeças decepadas como pesos, e usam espadas e flechas como pentes, enquanto tecem, cantam uma estranha melopeia, relatando as suas intenções matizadas por um prazer sinistro. Entre os Anglo-Saxões, por exemplo, as Valquírias (wælcyrie Inglês Antigo, wælcyrge no singular) eram espíritos femininos da carnificina. Os Celtas, com quem os nórdicos e outros povos germânicos estabeleceram vários intercâmbios culturais, têm também na sua mitologia seres idênticos que revemos nas deusas guerreiras Badb e Morrigan. 

Uma vez foi confrontada com uma opinião de uma jovem que tentava contrariar a ideia de que os povos gentíos do Norte pudessem apreciar um mulher sanguinária. Os relatos históricos mostram-nos o quanto as mulheres deste ponto do mapa mundi incentivam os seus companheiros em violentos combates com os romanos, ao ponto de lhes pedirem entrega total na luta para que não se tornassem cativeiras do exército invasor. Elas pediam sangue, coragem e proteção; e avançavam para a contenda de espda em punho, caso o esposo perdesse a vida. A vingança era um prato que se servia frio e de uma forma maquiavélica pela mulher ou mulheres que assistissem à usurpação da liderança entregue ao marido.

É claro que a atual noção do feminino não suporta a imagem de mulheres frias, capazes de atrocidades mais comuns entre a comunidade masculina, optando por um retrato de doçura nos gestos e de linhas corporais subtis e sensuais. Para mim, a sensualidade tem o contributo de algo de marcial - Vénus é amante de Marte; Freya é apreciada por Ódin, por exemplo. Uma mulher combativa e carismática gera ao mesmo tempo desejo e receio, e tece um longo manto de mistério em torno delas. Há algo, no seu âmago que a muitos seduz e ao mesmo tempo assusta. Acho que é o seu espírito livre e abrangente que alimenta sentimentos paradoxais, como se elas convidassem o individuo para uma inquietante entrega em queda livre, abrindo-lhes a porta à liberdade total dos condicionamentos sociais e morais. Elas estão no risco limite de um promontório, onde nada se vislumbra para lá daquela fronteira, sorriem e acenam em provocação para que avance e se deixe ir no grande salto.

 

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