Criar o fogo na paralisia de Naudhiz
Naudhiz Ilustração de Nigel Jackson |
Naudhiz é a segunda runa na ordem sequencial do segundo aett (família de oito runas) do FUTHARK, o que rege as forças cósmicas e os elementos da natureza que seguem um compasso à revelia dos humores humanos. Trata-se de um símbolo com significado muito semelhante ao do mestre Saturno. Sim, aquele planeta negro que aparece no mapa astrológico para nos atezanar (expressão popular para aborrecimento) os assuntos governados pela cúspide onde se encontra. Saturno tem o mesmo efeito de retenção de Naudhiz, gerando uma estranha sensação de que os ponteiros do Relógio Universal não saem do sítio. É um facto que não percebemos, na altura, o porquê desta insistência de não sair do sítio, mas agora sei que a razão subjacente oferece-nos uma belíssima recompensa: o amadurecimento alicerçado e a oportunidade de olharmos bem lá no fundo, perscrutando a génese de padrões repetitivos e, mais importante, de fortalecermos a vontade e a identidade psicológica.
Naudhiz está associada ao inverno, a estação mais paralisante do ano. Muito a propósito, certo? O frio, o gelo, a chuva intensa, o cinzento carregado das nuvens a encobrir o sorriso do céu, tornando os meses mais longos e lânguidos, que aceleram o desejo pelo calorzinho da primavera. Nesta altura, tudo parece imóvel, estéril e triste. Meras ilusões, se fecharmos as pestanos dos olhos físicos e entregarmo-nos a nós próprios. A necessidade a que Naudhiz alude é a inevitabilidade de uma aprendizagem de superação de adereços psíquicos obstrutivos para podermos seguir para o estádio seguinte. A ideografia desta runa pertence à memória atávica do gesto ritualístico dos nossos antepassados quando celebravam o fogo sagrado. A potência ígnea selvagem gerada num tempo mítico pela fricção de dois galhos de árvore e conduziu a humanidade para um dos maiores níveis evolutivos (que Gaston Bachelard descreve na perfeição na sua Psicanálise do Fogo).
Na inércia aparente criamos uma força flamejante, que se manifesta no fogo interior. Naudhiz retrata esta disciplina de aquietação, travando o aceleração cerebral, deixando criar uma camada de gelo exterior para nos conduzir a uma experiência centrípeta (imposta por Isa, a runa do Gelo, que vem logo a seguir a Naudhiz). Nesta fogueira purificadora queimamos os resto de papéis de histórias que ficaram inacabadas por orgulho, por raiva ou por frustração; e atiramos para as chamas os lenços esvoaçantes da impulsividade, da impaciência e da ansiedade. Porque não é possível avançar para o futuro quando temos os dois pés ainda presos no passado.
Encaixo aqui o Feroniae, festival da Roma antiga dedicado a Feronia para melhor perceção do significado de Naudhiz. Ferónia era uma deusa associada à vida selvagem, e também à fertilidade, saúde e abundância. Georges Dumézil interpreta Feronia como uma deusa da natureza virgem e das forças vitais, e explica que era cultuada porque oferecia ao homem a oportunidade de dar bom uso a estas forças no sentido de criar alimento, fomentar a saúde e potenciar a fertilidade num meio aparentemente hostil e inculto. O desafio proposto por Ferónia é idêntico ao de Naudhiz, pois esta runa concede a oportunidade de aperfeiçoarmos e transformarmo-nos enquanto esperarmos que a roda gire e nos abra um novo caminho.
A persistência é o maior combustível psicológico para vencermos o período de resistência, de paralisia que surgem em timings diferentes a cada um de nós. Antecipar acontecimentos se não estivermos bem firmes poderá ser o mesmo que uma rajada de ar que passa de repente. Eu sei que é difícil, muito difícil de esperar, mas até lá vou aproveitando o tempo para aprender o necessário para enfrentar com segurança e confiança o próximo passo - quando tiver de ser, naturalmente.
Comentários
Enviar um comentário