A luta com o lobo Fenrir

Os deuses estavam com terríveis pressentimentos sobre o destino dos três grandes agentes do caos: Jormungand, Hel e Fenrir, a prole do dúbio e destrutivo Loki, que no espoletar da destruição do Universo dará um repentino e diabólico riso triunfante. Engendraram esquemas protetivos que manteriam os demónios controlados, pelo menos durante um tempo. Mas a astúcia de Fenrir, o lobo gigante, deu luta e obrigou os deuses a esforço redobrado para refrear a voracidade do animal. A resistência do lobo fez recear o reino celeste e implicou uma atitude ponderada e inteligente. A solução inicial foi mantê-lo em Asgard, mas só Tyr, o guardião da lei e da ordem, se atrevia a alimentá-lo.

Fenrir («habitante do pântano») foi crescendo e engordando de tal forma que Asgard tornou-se o local desaconselhável para continuar a viver. Conhecendo bem o potencial destrutivo se  lhe fosse permitido andar livremente pelos palácios celestes, os deuses tentaram então prendê-lo, convencendo o lobo de que os grilhões serviam para quantificar o quanto era forte e pujante, e bateriam palmas sempre que conseguisse quebrar as cadeias.

Após várias tentativas e muitas correntes partidas, os deuses enviaram um mensageiro a Svartalfheim, o reino dos anões e dos elfos-negros. Os artesãos mais qualificados do cosmos forjaram então uma cadeia cuja força não poderia ser igualada.  Gleipnir, «o aberto», mais parecia feito de seda, dada a delicadeza da textura que apresentava, tendo sido forjado a partir do barulho dos passos de um gato, da barba da mulher, das raízes das pedras, da respiração do peixe, e da saliva de um pássaro - ou seja, de coisas que não existem,  e contra as quais é inútil lutar. Essa era a magia de Gleipnir, que pela flexibilidade não iludiu Fenrir.
 
lobo suspeita que é uma armadilha e exige como garantia que lhe seja colocada entre as fauces a mão direita de Tyr. Os deuses não concordaram, naturalmente, pois sabem que isso significaria a perda da mão do deus. A bravura, porém, de Tyr fê-lo sacrificar-se em prol do bem-estar de todos e ofereceu-se a satisfazer a exigência de Fenrir, que percebeu a impossibilidade de escapar de Gleipnir e desfez e engoliu a mão.

A besta foi acorrentada e transportada para um lugar solitário e distante. A cadeia foi amarrada a uma rocha e foi-lhe colocada uma espada na boca do lobo de modo a manter abertas as mandíbulas. Preso e a ferver de raiva, uivava louca e incessantemente, e uma espuma saia da boca que deu origem ao rio  Van, «expectativa». Ali, permaneceu até ao Ragnarök (A morte dos deuses). 

Fenrir, inimigo implacável dos deuses, sobretudo da ordem cósmica, simboliza o tempo destruidor, a noite mórbida dos instintos básicos, que podemos rever em múltiplos exemplos na sociedade atual. Este é apenas uma pequena réplica do lobo personificador do herói guerreiro, designado pelos povos germânicos de Berserker. Fenrir representa, de forma exponencial, a violência que afeta a consciência do indivíduo, que se entrega às emoções sem olhar às consequências. Fenrir engordou e agigantou-se ainda mais toda a vez que Tyr, divindade da justiça, da ordem e da honra, o alimentava. Há aqui uma dicotomia entre a ordem e a destruição, na busca pelo equilíbrio que hoje em dia é cada vez mais difícil de estabelecer. A integridade é devorada e corrompida por uma espécie de lobo malvado, a salivar de apetite movido por um ambição despida de valores.
 
O lobo vê bem à noite e é animal do ardor combatente. Tyr é o deus da vitória, do guerreiro valoroso imune ao medo, por isso enfrenta o pedido de Fenrir e dá-lhe a mão, com a qual luta e dá voz de comando. A mão direita tem um pendor solar, espiritual e soberano. É com ela que Tyr domina as forças infernais simbolizadas pelo lobo gigante: ele sacrifica-se voluntariamente, indicando-nos a via de salvação sobre as emoções básicas que seduzem a gula de quem não lhe basta o que já tem e que continua insaciável perante a perda a que submete os outros.

A prepotência reluz na noite infernal de Fenrir, que só é subjugado por uma corrente feita por habitantes da escuridão do submundo, os anões, seres retratados sem luz da consciência. Tyr é o senhor dos céus que comanda sobre este patamar e com ele aprendemos o valor da coragem e nos diz que nenhum lobo jamais estropiará os valores que nos definem como seres conscienciais e habitantes da clareza.

Ouço muitos uivos e vejo brotar por entre os dentes de muitos lobos a espuma da raiva, da fúria e da tirania. Mas vejo que há uma espada a esgaçar as mandíbulas do animal. O símbolo de virtude e da bravura sobrepõe-se e isso irrita, como aconteceu com Fenrir. Enquanto a boca estiver aberta, a noite infernal, a violência não derrotarão a luz e a ordem, pelo menos até à regeneração do universo. O Ragnarök é um evento cósmico necessário para que haja uma nova ordem espiritual. Fenrir está prestes a soltar-se, definitivamente, para devorar o sol e intensificar as trevas que vão caindo sobre o mundo.

 

Comentários

  1. Adorei. Fui transportada para um episódio de "Vikings". :)

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    1. Obrigado, Anabela Pinto. Para mim é mágico quando consigo criar emoções tão positivas!!!!

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