Vamos comer castanhas da vida

Vim matar saudades comigo mesma e com aqueles que lêem o que por aqui escrevo, neste cantinho virtual, um cantinho que está cada vez mais perigoso para a saúde mental da humanidade. Não, não há riscos complicados se se predispor a espreitar esta janelinha que abri para o mundo que (ainda) não vejo, mas contato com gosto. O contato!!! Palavrinha mágica, que se vai perdendo à medida que as relações se extinguem na individualidade egoísta, materialista, consumista e possessiva. Não julguem que as festinhas pontuais, a assinalar marcos concretos do ano, outrora prenhes de significado coletivo, servem para o pessoal sentir que até convive bem, alegremente em grupo. Acho que essa hipocrisia incomoda bastante São Martinho. O santo altruísta, que divide a capa com o mendigo a tilintar de frio, produzindo o efeito taumaturgo de um breve verão para aquecer os desprotegidos. 
As fogueiras de São Martinho, os magustos, as primeiras da época do frio, do escuro, da entropia, criam a resistência em manter a força solar na estação da "morte". O estado úbrico desta época é delicioso, porque proporciona um clima de intimidade com os outros, por outro lado, liberta-nos da pressão do tampão das regras e interdições sociais, sendo nos consentido um efémero momento de desordem. É este tipo de escapes (como no carnaval ou as saturnálias) que garantem o equilíbrio mental. "A ordem humana comporta a desordem", diz-nos Edgar Morin, defendendo que precisamos desse balanceamento de modo a que seja possível o convívio connosco e com os outros. A desprogramação genética por força da cultura (não falo das questões do conhecimento, nem do trabalho agrícola) regride os instintos, mas condiciona a ligação às raízes biológicas arcaicas do ser humano. O altruísmo é um traço da personalidade e genético que a cultura da posse, do consumo, etc e tal, esbateu e atirou para o baú do esquecimento.
É uma pena, porque na tradição de São Martinho, que substituiu tradições pré-cristãs (pois claro, como muitas outras disfarçadas de santos e santas) os povos antigos - e ainda se vê isso nas zonas rurais - agarravam-se a todas as festividades para estreitar os laços entre os membros da comunidade, fortalecendo a cooperação. E assim o coletivo beneficia o indivíduo e vice-versa. O grupo fica mais forte para competir com outros grupos, se as circunstancias a isso obrigarem. Por isso, aprecio as tradições populares, o vínculo que nos liga às raízes e afasta-nos da solidão, da depressão. O apoio é um resistente alicerce, assim como a recordação dos nossos antepassados. Estamos ainda próximos do Samhain, a abertura dos portões da fronteira deste mundo e do de lá, e inicia o Ano Novo, segundo o calendário Celta, e celebra-se o encerramento das colheitas. Perdemos o hábito de comer e beber com os "mortos" e de nos deixar ir para "dentro" como a Natureza. Negamos o recolhimento, esbofeteamos a introspeção, arranhamos o necessário repouso do corpo, em prol de um "psicotrópico vendido pela sociedade dos espelhos. 
Comemos castanhas...A castanha na cultura popular portuguesa afigura-se no alimento do submundo. Fruto capsular do outono, por consequência associado à fase cadente do Sol anunciando o aumento das horas noturnas e o domínio de forças sobrenaturais malignas. O recurso profilático da castanha em fenómenos de possessão do Diabo e de proteção contra o mal constitui elemento pródigo na superstição portuguesa - talvez, pelo facto de nascer no interior do ouriço, cujos espinhos têm ação repelente, tal como todas as plantas acúleas. O ato de oferecer castanhas aos mortos tem o propósito de apaziguamento de almas perturbadas. Ofereciam-se castanhas aos mortos no dia de Fiéis, em Trás-os-Montes, e com eles os familiares comiam o fruto que está na base da economia local. Os laços não se quebram pela morte, unem-se pela vida e pelo fruto que anima o vivo e mesmo o morto. Atualmente, nem os vivos estão vivos, apenas respiram, não sentem, não tocam com sentido, não são. Se forem a um magusto, lembrem-se que o fogo aproxima, conforta e dá vida. A artificialidade esfuma-se....

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