À procura dos anões

Ao percorrer terras mineiras, em Barroca (Concelho do Fundão), onde do seu ventre saíra volfrâmio para gáudio do sustento económico do país, veio à minha lembrança a labuta dos seres minúsculos a quem Ódin deu corpo e existência senciente. Os anões, ou dvergars na língua germânica, de inócuas larvas que consumiam o corpo sacrificado do gigante Ymir no que se transformou no mundo terrestre e em todos os elementos que o compõem, a homúnculos essenciais ao pulsar de vida no subsolo. No submundo em que a luz dificilmente penetra, estes seres de Svartalfaheim forjam a massa subconsciente que enriquece a alma humana e fertiliza a matéria negra da qual se extrai o nosso sustento alimentar. A negritude que oculta os seus rostos e a fraca pujança física condicionam os dvergars a uma presença incompreensível sobretudo para uma sociedade autocrática, estruturada de molde a convencer-nos que não vale a pena escavar bem fundo do que temos dentro, o tesouro oculto que faz parte do nosso poder pessoal - o verdadeiro e intransmissível espólio que nos guia à integral vivência espiritual. 
A fábula da Branca de Neve e os sete anões contém revelações fantásticas sobre a faceta selvagem feminina; mas não é exclusiva à fase iniciática da mulher. Os anões não são dotados de beleza física, porém são descobridores de outras belezas reluzentes que reconhecemos na importância da extração do minério e de pedras preciosas. A ingénua Branca de Neve come a maçã envenenada, o fruto do conhecimento, da consciência superior, oferecido pela bruxa má, a figura diabólica que cruza caminho com o intuito de causar perturbações, de nos desafiar a entrar no reino dos mortos em busca do ramo dourado que nos concede a virtude de vencer a morte, ou seja a imortalidade. Quando desperta motivada pelo beijo (sopro vital) do príncipe, a contraparte masculina da psique feminina, Branca de Neve regressa do reino de Hades já mulher completa, madura. Há uma sabedoria oculta no mundo subterrâneo onde é recolhido o minério para ser transformado no fogo das forjas em peças cujo valor transcende o significado meramente material. Os anões escavam, os mineiros imitam-lhe os gestos e trazem à superfície as poeiras inúteis acumuladas de que são exemplo as pirâmides das escombreiras da Lavaria do Cabeço do Pião, avistadas à distância nas vertentes da mágica serra da Gardunha. O que não interessa é exposto à luz do sol, a matéria psíquica que se acumula no inconsciente e tantas vezes nos condiciona, inviabiliza a possibilidade de vivermos as experiências plenamente.  
Em Svartalfaheim, o fogo de Loki, o adversário escandinavo (idêntico à bruxa má da Branca de Neve), as pepitas de ouro descobertas pelos Elfos-negros e o ferro retirado do interior da terra pelos anões adquiriam formas magníficas em objetos que multiplicavam o poder mágico dos deuses. Estes génios da escuridão davam forma e consistência ao que parecia disforme em simples rochas antes de se submeterem à purificação. Os ferreiros e os aurífices de Svartalfaheim têm a magia de tornar visível o que está oculto, de limar as arestas mais resistentes auxiliando ao maravilhoso parto da riqueza escondida em pedras milenares, prole da Mãe-Terra. A Grande Progenitora que nos deixou a sua lembrança nas pedras generatrizes, os belos símbolos de fecundação que polvilham o imaginário coletivo, e seus altares epifânicos. Vários são os lugares de manifestações da Nossa Senhora em locais de granito, aludindo à reminiscência do reino da Deusa-Terra, anterior ao advento do Deus-Céu.
Nossa Senhora da Rocha (Barroca)
Os Elfos-negros revelam a força telúrica dos irmãos consortes Frey e Freya, divindades heteristas e ctónicas responsáveis pelos processos produtivos da terra. É da sua força sexual que depende a reprodução animal e humana, a prosperidade e riqueza da comunidade. Frey e Freya governam as operações e os habitantes do mundo subterrâneo: o forno de Atenor da vida e da morte. 
É a Freya que os anões oferecem o poderoso Brisingamen, o colar de âmbar, símbolo do fogo telúrico. Em contrapartida, a deusa dormiu com cada um dos quatro anões (possível alusão às quatro diferentes posições o sol nos equinócios e solstícios por efeito do movimento de translação da Terra). Desta relação, Freya granjeou a faculdade de cura de todas as doenças, a força fertilizadora do ventre feminino, capacidade de proteger os guerreiros, concedendo-lhes a vitória e dobrou o poder de espalhar o amor.  
É também pela intervenção dos anões que se produz a bebida da sabedoria. Intrigados pelo vasto conhecimento de Kvasir, o colossal humano gerado pela fervura das salivas dos Aesir e dos Vanir, Fjalar e Galar engendram uma maneira de obter este tesouro. Kvasir foi, então, sacrificado pelos dois elementais numa sangria posteriormente fermentada com mel. A bebida do êxtase foi vertida em três vasos. A fama deste licor suscitou a cobiça de todos os quadrantes e várias tentativas de roubo. O gigante Suttung foi o mais bem sucedido e escondeu os três recipientes no interior de uma montanha- qual ventre de minério precioso - sob a vigilância da sua filha Gunnlod. Ódin sabendo dos detalhes da força sobrenatural da bebida, disfarça-se de serpente para poder entrar nos recônditos caminhos do interior da montanha. Uma vez chegado à galeria principal, Ódin aí permanece silencioso durante três dias para conquistar a confiança de Gunnlod. (O número três tem uma simbólica transformativa importante em diversas mitologias.) Ao fim desse tempo, convencida das boas intenções, Gunnlod permite-lhe apenas um pequeno sorvo; mas Ódin bebe tudo de um trago só e foge rapidamente na forma de uma águia - animal solar, contraparte evolutiva  da serpente - levando no bico o maravilhoso líquido da Poesia Extática. 


Nestes pequenos excertos podemos descobrir a importância de também nós procurarmos os anões e elfos-negros que operam no nosso submundo e descobrimos o nosso  poder pessoal, a força transformativa que nos coloca nos trilhos da maravilhosa caminhada espiritual. Foi esta a lição que trouxe das férias de verão, que terminam esta segunda-feira, e também a emoção por os meus olhos revelarem a magnificência de mais lugares que pareciam remotos neste espaço geográfico a ocidente da Europa.
O subsolo do concelho do Fundão é um extraordinário exemplo estimulador de que do escuro brotam riquezas da identidade social, cultural e económica dos povos outrora filhos daquela terra: ao gabinete do museu de arqueologia daquela cidade beirã chegam, a amiúde, artefactos saídos do interior da terra reveladores do passado da região. A história reconstrói-se constantemente; só é pena não haver investimento para explorar melhor os dez castros descobertos pelo tempo. 

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