Celebração da Primavera em Viana

Viana do Castelo ergue-se nas ruínas de uma citânia ibero-celta e no topo da colina virada para o rio Lima, o altaneiro santuário de Santa Luzia, a padroeira da vista, pela graça concedida ao capitão de cavalaria Luís de Andrade de Sousa, acometido de grave doença oftalmológica. Não terá sido essa a razão que Guilherme Guimarães considerou os olhos como uma das partes do corpo humano uma referência simbólica do corpo Mãe-Terra. Julgo que o jovem, uma das testemunhas da dança de integração, no culminar do encontro de Celebração da Primavera, se referia à dimensão espacial que a visão abarca desde a linha do horizonte, lugar de repouso do Sol, ao berço onde este renasce diariamente retemperado pelas águas salinas. A visão é um dos sentidos físicos mais requisitados, excessivamente operados no sentido de fornecer estímulos cerebrais, ocultando e renegando os restantes sentidos que o complementam e enriquecem a experiência sensorial. A este universo de "sentidos", acresce o mais ignorado e desprezados de todos: o sexto sentido, vulgo, intuição. A intuição é a "especialidade" refinada das Mulheres, seres feitos de muitos líquidos e de suave e moldável carne.

A Celebração da Primavera, na Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, ao segundo dia de abril, mês propenso às águas celestes, resgatou Mulheres esquecidas, outras prostradas por duros regimes religiosos e feudais economias. Os seguintes excertos de sermões eclesiásticos do século XVII, dizem mais do que qualquer tentativa explicativa: "o feto feminino demora o dobro do tempo do feto masculino a ganhar vida, a ser pessoa"; "ensine-se a mulher como a ignorante"; "tudo nas mulheres são excessos para elas não há medidas"; "as mulheres são inconstantes e de fraca palavra, o seu testemunho é vário e mutável (é falsa e dada ao sortilégio)"; "o sexo feminino é dado à loquacidade e provoca a sensualidade".
Nehelenia deusa celto-germánica
 da fertilidade, das águas e submundo
Pedras lapidares pesadas empilhadas sobre uma muralha asfixiante construída ao ritmo da estética do pensamento dos grandes filósofos gregos clássicos, entre os quais pontua o magnificado Platão que duvidou em que género deveria ser colocada a mulher, se no dos racionais ou dos irracionais, isto para justificar que a mulher é frágil e menos capaz de racionalidade que o homem. Os romanos espoliaram o sexo feminino de uma existência jurídica e até houve quem se indignasse pelo necessário tempo de resguardo após o parto. Parecemos o Atlas a carregar o globo terrestre, punidas pela culpa primitiva da Eva ter cedido à sedução de Samael, a serpente Iniciadora da sexualidade e dos ciclos menstruais. Recomendava-se a mulher ao recolhimento, porque foi a vontade de Eva em ver e conhecer o mundo que a levou a pecar. A mulher devia ficar em casa, empenhada nos assuntos domésticos, porque se andasse na rua teria oportunidade de ver o que a rodeia e isso despertar-lhe-ia a curiosidade, no impulso básico do conhecimento.

Mulher é sinónimo de pecado pela tentação sensual. Andar na rua era tentar o olhar da lascívia dos homens. A mulher é a razão de todos os desvios, o apelo à sensualidade e veículo de verbalização dos propósitos do demónio.A psicologia feminina é caracterizada por excessos de sentimentos.

No dia 2, foram quebrados mais uns quantos grilhões, tendo como ponto de inspiração a mulher vianense, dotada de figura jeitosa e robusta, que respira energia e saúde, excessivamente ouradas, no cortejo de Nossa Senhora da Agonia, denunciavam a importância do ouro como heliofania da Idade do Bronze. As peças de ouro pendentes nos pescoços das Noivas, Mordomas e Lavradeiras de Viana do Castelo manifestam o poder genesíaco do Sol em figurações arcaizantes de guardiãs dos Mistérios da Criação. As joias são o seu dote e banco que trazem o sobre o cofre onde guarda a sua melhor joia - o coração. Nas rosadas maçãs dos rosto das pujantes Vianenses, espelhos intemporais das Vénus paleolíticas, em cujas ancas largas de parideiras e úberos peitos despontam seres viventes e um colorido universo vegetal. O prestígio de fazer crescer e prosperar contido naqueles longos e pesados cordões de ouro, de idêntico simbolismo dos ricos e belos colares hieratizados e funcionais da Deusa que preside aos nascimentos e à morte. Na carência social e económica de um Distrito que, até à década de 1980, sofreu dos efeitos da emigração dos homens, a mulher dedicou-se ao trabalho árduo e extenuante. As peças de ouro manifestam o orgulho das aldeias a que pertencem, transmitindo a ideia de resistência às dificuldades materiais.

A Mãe-Terra tanto se reflete nos pés, mãos, cabelo, pulmões ou tronco, etc.. Qualquer destas respostas dadas pelos jovens surpreendidos pela dança de integração serviu para lhes despertar a atenção sobre o próprio corpo e a sua relação com a Natureza. Enquanto assistiam aos movimentos circulares e dinâmicos, um elo mágico e diáfano se foi formando, como uma espiral conduz ao centro, à semente, ao feto no seio materno, a força genesíaco, ao mesmo ponto-gérmen que se desenha o símbolo astrológico do Sol. Naquele não-tempo houve uma fusão extraordinária às danças ritualísticas de Cogul (Catalunha) e de Combarelles (França): homens e mulheres unidos pela mesma força de intenção.
Cenas rupestres de Cogul





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