Sigurd: o modelo guerreiro-herói


Sigurd é um jovem de grande talento físico e mental, sendo o  paradigma do heroísmo dos guerreiros nórdicos. O filho de Sigmund inicia a demanda pela imortalidade no momento em que assassina o dragão Fafnir, antes um anão transformado em besta serpentiforme, devido à ganância que o prendeu ciosamente ao tesouro do pai (que ajudara a matar), e assim se tornou num símbolo de materialidade. A avidez de Fafnir afastou-o da realidade, isolando-o no terreno árido e tenebroso Glittering, no qual ninguém se atrevia a entrar. Sigurd é incitado a matá-lo pelo irmão de Fafnir, Regin, um ferreiro fantástico e versado em magia. Uma vez que exprime um aspeto terrestre-animal, pela agressividade como força da manifestação de um génio das trevas, estes monstros constituíam um excelente desafio iniciático para um povo predisposto a façanhas impossíveis. O lema de vida dos antigos povos de raiz germânica era um intenso orgulho na coragem, que marcava um ponto de mutação da condição humana para o estatuto semidivino. 

Sigurd é um modelo épico e metafísico das emoções básicas através da vitória sobre as forças hostis simbolizadas pela serpente-dragão, que venceu as forças do psiquismo obscuro e entorpecentes do comportamento e consciência humana, mas, por outro lado, prometem o acesso aos tesouros ocultos do espírito. O dragão é um agente que conduz à transcendência pela imagem teriofórmica dos medos inconscientes. Sigurd superou a primeira etapa iniciática e acedeu ao arquivo precioso de um Antepassado Mítico, arrancando o coração de Fáfnir com a espada fulminante Gram, "Ira". O coração é o órgão central do indivíduo, pelo que é análogo à noção de centro. Tomar posse do coração é o mesmo que dominar o centro do mundo - o trono do Deus. O Graal converte-se, na lenda de José Arimateia, num substituto do coração, que é o recetáculo natural do sangue. O Graal, neste contexto, é o cálice que contém o sangue da ferida de Cristo, ou seja o mistério da ressurreição.

O processo do herói nórdico visa o resgate do Espírito, da parte solar. Sigurd apresenta-se a Fáfnir como “Nobre Veado. O veado tem conotações solares, cuja simbologia aparece estampada no caldeirão Gundestrap, na figura do protetor dos guerreiros, Cernnunos, sentado em posição meditativa, representado com cornos de cervo e a dominar uma serpente cornuda. A lenda de Sigurd ilustra o eterno combate entre as polaridades contraditórias essenciais à construção da identidade divina. Ele é o Parsifal da ópera de Richard Wagner que resiste a Kundry, uma mulher de duas naturezas opostas: uma, como servidora do Graal; outra como escrava de Klingsor, senhor da matéria. De um lado, o dia, a potência solar; do outro, a noite, a potência das trevas. O nome de Sigurd é um compósito de Sig, que significa vitória, luz, cura, e empresta a sua raiz à Runa Sigel (Vitória do Sol), e de Urd, curiosamente a designação de uma das três irmãs do Destino. Urd é a mais velha, simbolizando a origem dos Tempos, o Passado e a que detém o poder absoluto sobre o destino. No seu fuso de prata, ela trabalha a extensão de vida dos Homens e dos Deuses. Sigurd é, portanto, um herói que vence a temporalidade para afirmar-se na Imortalidade ao aniquilar a Serpente-Dragão. Ele atinge a iluminação consciencial ao apoderar-se do conhecimento esotérico contido no coração do dragão. Quando cozinhava o órgão vital do moribundo Fáfnir, queimou o dedo polegar levando-o à boca para aplacar a dor, de cujo gesto sorve um pouco do sangue do dragão. De repente, começou a perceber o dialeto dos pássaros, os núncios dos deuses, e o sussurro das folhas das árvores que lhe decretam um auspicioso futuro como guerreiro, orientando ainda ao resgate da donzela-fogo, Brunhild, mergulhada num sono profundo na montanha.



O sangue dragontino contém os mistérios da linguagem da natureza. Ele vive aqui uma primeira viagem iniciática de fundo xamânico e avança para uma Iniciação Superior ao subir à montanha Hindfell, onde o esperava Brunhild, protegida por uma espessa muralha de fogo. Sigurd tentou atravessá-la, mas a travessia só foi possível na montada de Greyfeel, descendente do cavalo mágico Sleipnir, experienciando, pois, mais uma viagem xamânica entre mundos. Sigurd cruza, assim, a dimensão espaciotemporal e entra num patamar intermédio muito perto ao mundo espiritual. Aliás, as valkyrjur habitam num plano apenas acessível aos deuses, e são as psicomensageiras de Odin provenientes do Paraíso dos Imortais - o Valhalla.

O conhecimento mágico conferido pelo Graal do dragão conhece uma nova etapa, esta por via do Fogo e da Luz (qual Lúcifer). Sigurd liberta Brunhild ao retirar-lhe o elmo, uma espécie de máscara, soltando os seus belos cachos dourados - metáfora para Sol -, e depois abre-lhe a armadura com a espada e depara-se com uma bela donzela vestida com uma túnica de branco puro e brilhante (Luz). Brunhild é como a Brancaflor de Chrétien de Troyes, e Sigurd o herói Perceval que salva a donzela e restitui a alegria no castelo Beaunepaire. O despertar de Brunhild tem todos os ingredientes do mito solar do renascimento e da ação complementar do Sol sobre a Lua: da mesma forma que o astro da noite é vitalizado e reflete a luz solar, Sigurd, sendo a personificação do astro do dia,  reavive o corpo inerte e recetivo de Brunhild, que, assim, acorda com os primeiros raios da alvorada.

Embora tenha sido condenada ao sono eterno por desobedecer a Odin e obrigada a conhecer o amor dos mortais, o Pai Supremo manteve-lhe o estatuto de valkyrja, a donzela capaz de desvelar o mais corajoso de todos os guerreiros e  a portadora da sabedoria arcana das Runas. Neste sentido, Brunhild é a Iniciadora de Sigurd, o elemento que a completa.  Ela acorda com o romper da alvorada, e estimula jovem guerreiro a selar a união com o anel de Andvari,  recriando um rito de agregação, neste caso, de Brunhild à realidade profana de onde  provém o jovem guerreiro. É nesse momento que  Brunhild, em gesto de aceitação de Sigurd ao mundo sobrenatural, lhe oferece um corno cheio de hidromel como  taça da memória (minnis-cup) e transfere-lhe o poder das Runas. Com esta doação, ela consagra a Iniciação final e equipara Sigurd a Odin, este que teve de se submeter ao autossacrifício para aceder aos mistérios rúnicos. A transferência deste poder supremo implica um estado ético elevado, não podendo ser aplicado com qualquer juízo confuso ou com intenções corruptíveis. Brunhild é a Iniciadora, uma espécie de Esclarmunda, criada por  Wolfram von Eschenbach, a virgem guerreira cátara que traz o Santo Graal, precedida de 25 mulheres segurando tochas, facas de prata e uma mesa talhada em uma esmeralda - a pedra de Lúcifer.




Brunhild, porém, é uma mulher virtual, cuja essência mantém-se imaculada apenas na montanha, o símbolo do eixo do Mundo. Enquanto ambos permanecem neste recinto, a clareza mental não é afetada ou desviada pelas imperfeições humanas. Ao deixar Brunhild em Hindfell, Sigurd retoma ao plano mundano e é pervertido pela ganância de terceiros e passa a viver sob o efeito da ilusão. O enredo envolve Brunhild, resgatada da Montanha por artes mágicas ….disfarçado de Sigurd. O drama desenvolve-se em forte tensão emocional e de vingança. É impossível um relacionamento no plano mundano e nos breves momentos possíveis de intimidade Sigurd partilha o leito com Brunhild mas com a espada a separá-los. A espada separa, delimita e é também símbolo de luz e da força do relâmpago.  Nota-se neste ato a certeza de que ambos pertencem a domínios diferentes e que só na morte física a união será exequível: juntos fazem a viagem na pira funerária. Pelo fogo se conhecem e pelo fogo se unem, definitivamente.



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