A Pedra da Senhora

O preâmbulo de 21 de setembro de 2015, pelo roteiro das pedras de Vila Nova de Gaia, deixou-me água na boca a propósito do Santuário da Nossa Senhora da Saúde, em Pedroso. A orografia deste espaço sagrado, agora cristão, imprimiu na minha alma o apelo de uma segunda visita, desta feita de regaste da entidade divina outrora orago naquele lugar fortemente gentio e de reminiscências do culto da Mãe Terra. Esse maravilhoso corpus mitológico de Mouras Encantadas que confere intensa vibração ctónica a Portugal, antes Terra de Ofiusa, a grandiosa Serpente Negra dormente no nosso subterrâneo antropológico. À lenda das pedras trazidas pelo mar que configuram o círculo de pedras sobre o qual assentam os alicerces da igreja, aditou-se um elemento fulcral para a compreensão das fervorosas orações femininas, que pude testemunhar no domingo - o dia de re-ligação à fé: a aparição da Nossa Senhora num penedo e com ela a inefável cobra. 
A Senhora e a cobra os dois elementos arcaizantes daquele santuário transfigurado por convenientes símbolos cristãos, mas que provam o engenho criativo popular de preservação de cultos antigos, de inestimável valor etnográfico de um povo nascido da Ofiusa. A idealização da Mãe Universal preservou-se ao longo de tempos imemoriais, na forma icónica ubérrima das Vénus paleolíticas. Portugal é um país intrinsecamente serpentino, de grande convulsão subterrânea, fazendo emergir à superfície, junto a memoriais líticos mágicos, avatares da Deusa. 
Na raízes das penhas, nas quais foi construído o Santuário de Nossa Senhora da Saúde, habita a Mãe incógnita para a sociedade de hoje, no entanto, ardentemente venerada por povos antigos, e talvez anteriores aos Turdulhos Velhos- povos que habitaram o castro. Dos resíduos da evanescência da manifestação física da Senhora sobre o rochedo, Júlio Dinis misturou nas suas obras escritas durante a estada em Grijó, em convalescência de uma tuberculose. O escritor portuense, do século XIX, foi inspirado a modelar mulheres temerárias na superação das barreiras sociais da época e a sugerir o pessoal cinismo pelo fanatismo religioso. 
O culto das pedras é tão generalizado quanto as capelinhas consagradas à Nossa Senhora - a relação é reciproca. A pedra nasceu com virtuosas propriedades capazes de milagres na conceção/fertilidade, no amor, garante tesouros e protege quem as trata bem e com elas estabelecem um acordo interdito. Os Senhores e Senhoras da Pedra, as Senhoras da Penha e do Pilar são reflexos do culto pagão às pedras. 
Em Pedroso - toponímo decorrente do Castro Petrosus - há um lugar mágico, no Monte Murado, onde a perspetiva espacial é amplificada ao mar e alinhado ao Senhor da Pedra, em Miramar; e na retaguarda, para terra, na linha com o Senhor dos Aflitos.





Comentários

Mensagens populares deste blogue

A serpente, a pedra e a moura encantada

Da terra das bruxas, parti com o riso de Baubo

Pelas pedras de Gaia