À procura da comunidade

Há qualquer coisa em mim que é ativada por esta altura do Natal e me faz mergulhar numa estranha nostalgia, por vezes, até causando-me aversão. Talvez haja uma explicação freudiana para isto (quem sabe???!!!). Mas não. Uma conversa fugaz, na bancada do Estádio do Bessa, no último sábado de novembro, com a minha estimada colega Cláudia Martins (uma voz feminina no futebol!!!), corroborou o meu sentimento de desprezo por uma sociedade sem espinha vertical, de servilismo e desprovida de integridade. Para quê falar de partilha, num bla-bla-bla de boca para fora, quando, na realidade, a esmagadora maioria não sente, nem sequer conhece a verdadeira essência das correntes de troca entre indivíduos. A Cláudia é uma das minhas: daquelas que não se importa de dar o peito às balas em defesa do grupo, mostrar carácter de liderança, servir de inspiração e exigir o melhor para todos os elementos. Não julguem que tal postura procura a superioridade, pelo contrário, é precisamente a correta definição de partilha. A identificação entre pessoas torna o Todo mais forte e requer do individual a mesma aplicação. Porque só assim é possível alcançar a Unidade.

Os povos germânicos antigos -estes em especial, porque é sobre eles que dedico os meus estudos - sabiam preservar a noção de comunidade, em estreita ligação ao mundo dos deuses, criando desta forma um sentido de responsabilidade perante a natureza e todos os agregados do clã. Competia ao líder honrar as suas funções com uma intenção grupal, pois a sua dignidade e prestígio ante os olhares divinos estava assim dependente. O nome era a suprema herança que poderiam deixar à prole: a memória enquanto antepassado subsistia no cúmulo de reputação de atos heróicos - como defender no máximo de exaustão a comunidade ou em combates em busca de meios à sobrevivência -, no respeito pela mulher - quem a vilipendiasse ou violasse sofria penalizações terríveis -, pelos deuses - personificações de forças da natureza -, sempre próximos dos domínios terrestres.  O nome ia-se carregando em potência, fortalecendo a alma totémica da comunidade, a hamingja, favorecendo a sorte do destino da mesma. O desaparecimento do indivíduo jamais anularia a carga do que se havia tornado uma "entidade" durante a existência terrena. A preservação da honra associada ao nome adquiria uma suprema importância para o seu "regresso", numa encarnação futura, cujo o brilho do olhar, o hugr, do novo ser acabado de nascer ditaria. A evocação do apelido de um antepassado no momento presente implicaria a recuperação de todas as etapas vividas pela pessoa que lhe dera vida antes e lhe acrescentara dignidade. 


É a falta desse sentido de honra pelo nome que nos foi dado à nascença que mais enferma a sociedade de hoje. Pouco se importam de que ande atirado de um lado para o outro, em recados daqueles a quem se ajoelham sem esforço, vergando a espinha, de sorriso de hiena à espera que o do lado sucumba pelo golpe da traição. À mesa, todos parecem remar o barco na mesma direção, e quando erguem os copos de cerveja estão a contar que no ano seguinte alguns já não estejam por perto. Tenho saudades, muitas, dos tempos em que terei vivenciado o symbel juntamente com grandes companheiros de batalhas, extasiada por Odin, fiz juramentos sobre o javali sagrado de Frey e aqueci a esperança nas fogueiras de Yule. As murras de Trás-os-Montes preservam a lembrança de que esta é altura de juntar-mo-nos, de recriar o centro e de religar-mo-nos ao divino, através do sentido comunitário.

Tenho saudades de me sentir em comunidade, em partilha. Era este o espírito reinante nesta época fria, de luz fraca que esses povos celebravam o solstício de inverno e saudavam o retorno do belo Balder dos meandros do submundo. Era este o espírito que se instalava nos "braços" da Árvore da Vida, da Abundância, da Felicidade e da qual resta-nos os pinheiros roubados aos peitos da Mãe-Terra como símbolos da árvore de Natal. Não me importava nada de ir aos bosques buscar os troncos em cujo interior habita o espírito do fogo, libertado nas labaredas solsticiais e dizer alto e em bom som: bem-vindo Sol, mestre invicto da criação. Era tão doces os tempos em que os xamãs corriam pelos céus negros estimulados pelos cogumelos amanita muscaria, nos carros puxados por renas psicopômpicas, rompendo fronteiras da consciência; substituídos por um gordo São Nicolau, de fato vermelho como os agáricos mágicos que a saliva do cavalo octópode Sleipnir "semeia" durante a cavalgada pelo firmamento.


A consciência altera-se agora com a folia do "black friday", do desejo arrepiante de ter, de cobiçar, da loucura desenfreada de gastar, porque já não sabem encontrar o norte delas mesmas (ou não querem). 

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