A outra Cinderela


Estavam ainda os deuses a festejar a morte do perturbador gigante Thjazi, na sequência do resgate da deusa da juventude, Iduna, raptada por um dos génios do gelo, quando entra no salão o anúncio de uma visita inesperada, que estragou logo a folia.

Skadi irrompe pela festa, com cara de poucos amigos, de armadura e de arma em punho prontinha para vingar a morte do seu pai. Face este cenário, o bom-senso recomendou aos
deuses que fossem pacientes e dialogantes, de modo a que a furiosa mulher das montanhas ruidosas não perdesse a cabeça e desatasse  a cortar cabeças. A estratégia funcionou e acabaram por convence-la a aceitar algumas compensações simbólica em vez de começar uma guerra por vingança.

A indeminização seria feita em três partes. Na p
rimeira, Ódin lançou os olhos de Thjazi  para o céu noturno para aí se fixarem como duas estrelas. Crê-se que se tratam de Castor e Pólux, que correspondem às "cabeças" da constelação de Gémeos.

A segunda apresentava-se, teoricamente, simples: fazer com que Skadi desse uma valente gargalhada. Muitas foram as proezas, mas nenhuma levou a gigante a esboçar o mais leve sorriso que quebrasse o rigoroso gelo do rosto de Skadi. As falhas causaram séria apreensão entre as divindades de Asgard, até que alguém se lembrou que talvez Loki fosse a solução. Amarram então uma das pontas da corda a uma cabra e a outra os testículos de Loki, e deram início ao jogo de puxar a corda. Resultado:  a cabra berrou, Loki gritou, e com boas razões, até que Loki caiu no colo de Skadi. A cena foi hilariante quanto bastasse para soltar uma ruidosa risada
.

Por último, ofereceram a Skadi a oportunidade de casar com o deus que teria e escolher por análise dos...pés.  Depois de observar as ofertas, Skadi optou pelo mais belo par de pernas, julgando tratar-se de Baldur o belo. Puro engano...tinha selecionado os pés
do deus-mar Njord.

O deuses promoveram um magnífico casamento, após o que chegara a hora do casal decidir onde iam viver. Casa de Njord, Noatun ("o lugar dos barcos"), era um lugar quente e brilhante junto à praia. Já a residência de
Skadi era bastante diferente:  Thrymheim ("Casa do Trovão"), um lugar escuro, nos picos mais altos da montanha onde a neve é persistente.

Skadi e Njord passaram as primeiro nove noites em Thrymheim. Passado esse tempo, desceram das montanhas, e nessa altura, Njord comenta que, embora tenha sido breve, viveu um período repugnante em Thrymheim, e revelou o desconforto pelo uivar do
s lobos, preferindo as melodias dos cisnes e das ondas do mar.
 
Ao fim de  nove noites em Noatun, Skadi tinha também razões para lamentar sobre a  casa ensolarada de Njord. Os gritos das aves marinhas eram insuportáveis para os ouvidos de Skadi, que não conseguia  dormir. Então, ela partiu para as montanhas, e os dois separaram-se, porque a convivência era impossível. 
 
Esta narrativa tem todos os ingredientes de práticas rituais antigas relacionadas com o matrimónio de uma mitologia naturalista. Njord era a divindade líder dos Vanir, conjunto de seres sobrenaturais regulares meteorológicos e portadores da luz solar e da chuva fecundante.  A beleza e o brilho dos pés e das partes inferiores das pernas de Njord que seduziram Skadi simbolizam a dicotomia entre o impulso produtivo da época primaveril e a força estéril das intempéries do inverno. E como vimos na evolução da história que a convivência é praticamente impossível; um exemplo que, de certo modo, aplica-se em muitos relacionamentos da atualidade. A combinação psíquica é fundamental no fortalecimento dos alicerces das relações. Nem demasiado frio, nem demasiado quente. O equilíbrio é a plataforma ideal para o florescimento de qualquer tipo de ação, relação: a semente progrede desde o interior do subsolo com temperaturas temperadas e como planta é colhida no pico do calor, e regressa ao estado de gérmen no inverno.

Os extremos aqui não se tocam e nem sequer se conseguem misturar. A ilusão criada pelo impacto visual informa erradamente o cérebro, criando e conduzindo o estímulo neurológico no sentido incorreto. A dificuldade de diálogo existencial entre Skadi e Njord confirma a incompatibilidade temperamental, nem sempre tida em conta nas relações. A aproximação de características psicológicas é o meio termo que trabalha para a plenitude. Mais do que escolher em função de uma sensação, é preciso levar em conta a maioria dos pontos em comum. A mitologia e o folclore mostram que o inverno e o verão conflituam, embora sejam necessários à frequência dos ciclos da Natureza; assim como é importante respeitar a pluralidade e a diferença. Mas se nos fixarmos no plano das relações humanas, o melhor é que por entre a diversidade na personalidade dos indivíduos o oposto não seja significativamente distante para que não haja crispação, tentativas de subjugação pela parte que se autointitulada de mais forte. Tanto Skadi como Njord revelaram desprezo  e repugnância pelas condições ambientais das respetivas residências, ou seja o lugar mais íntimo e profundo da vivência psicológica de cada um de nós. E esse espaço interior, a consciência de cada um, foi aviltada e ferida.

É claro que a interpretação do mito do casamento de Skadi com Njord é muito mais ampla e penetra em outros campos antropológicos além daquele que preferi explorar. Fica a promessa de mais desenvolvimentos sobre história de amor equivocada...até porque Njord aparece neste argumento como Cinderela, contrariando a figura-tipo destas representações mágico-religiosas.

 

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