A Mãe de Água

Damos pouca importância ao que está por debaixo da imensa superfície em que colocamos os pés diariamente, na azáfama do trabalho, das compras do supermercado, na corrida louca pelos preços sensacionais da roupa na Primark, etc...etc e tal. Andamos sempre de cabeça no ar, a olhar para o "nada" ou para o "tudo o que não interessa". Felizmente, vou-me focando nos detalhes, nos pormenores que preenchem a alma e nos oferece um leve respirar do Outro Mundo. Pois é desse "Outro Lado" que nos chegam as melhores vias e intuições orientadoras do nosso real caminho. Num desses dias de observação, decidi dar a devida atenção às ruínas da “Mãe d’ Água de Mijavelhas”, que as obras do Metro do Porto puseram a descoberto e reconstruíram para nos deixar um legado, até à data ocultado, da memória etnográfica da cidade do Porto. Esta bela e granítica metrópole crescida sobre uma série de veios de água subterrâneos, alguns dos quais amiúde utilizados pelos romanos como rotas comerciais e de transporte para Braccara Augusta

“Mãe d’ Água de Mijavelhas” fora uma obra pública de matriz municipal de fornecimento de água a vários pontos da cidade, ao mesmo tempo uma porta de entrada no burgo pela "estrada para Valongo e Além", onde agora circula o trânsito na praça de 24 de Agosto, na freguesia do Bonfim. De "chafariz do Fernão Lopes" passou a “Arca” dos Homens-Bons do Porto Renascentista e de “Arca” a “Reservatório do Campo Grande”. Este reservatório distribuía e captava mananciais que matavam a sede ao povo, ao gado, nutria os campos, enchiam os poços e esbranquiçava a roupa das lavadeiras. A estratificação arquitectónica de estrutura espiralada foi crescendo em área, altura e abrangência urbana, ao longo de cinco séculos. Pedra sobre pedra esta "arca" de líquido vital fez brotar o "leite" da terra subterrânea. 

As águas femininas de Mijavelhas - assim designada pitorescamente segundo a antiga tradição de ser aqui que as mulheres se libertavam da urina, à chegada de uma viagem a pé desde Valongo e de São Cosme - fizeram-me recordar a úbere vaca Audhumbla, cujas tetas alimentavam quatro rios e saciava a fome ao gigante do gelo Ymir. A simbologia boviforme da água como fonte nutriz de toda a vida está concentrada em Audhumbla, ser primevo nascido da zona mais tépida de Ginnungagap, onde o gelo se transforma em água/chuva por ação das massas quentes de Muspelheim. O líquido precioso do qual nasceu a proto-matéria na origem do Tempos corre ainda em lençóis freáticos, desde a "boca" de Hvergelmir, o poço das águas universais que caiem das dimensões uranianas pela armação do Grande Veado Eikthrinir. 

Durante a construção da Estação Campo 24 de Agosto, encontrou-se a arca onde se armazenava a água, constituída por um poço com mais de seis metros de profundidade. Um dos muitos sinais de que o que está por debaixo também se apresenta relevante. A incompreendida dialética entre o Mundo Superior e o Mundo Inferior. É no ponto intermédio que nos encontramos, habitamos e coexistimos. Não é possível ignorar facetas ditas subterrêneas da nossa constituição como Seres e continuar a seguir em frente, em total desequilíbrio e desacordo. A superfície é apenas uma ténue barreira entre os dois mundos que não nos impede de transitar de um lado para o outro, no resgate de partes que nos vão faltando. Não é Ser, nem Existir se abdicarmos de dar atenção às nossas próprias águas subtérreas, à "arca" emocional, imaginativa, intuitiva e globalmente feminina. 


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